segunda-feira, 19 de setembro de 2016

As Camélias da Chácara*


Lembro-me como hoje: ia de mãos dadas com minha mãe, rumo ao cemitério – era dia de finados. A tarde estava bela, ensolarada, clima aprazível, apresentando os primeiros sinais do verão. Havíamos atravessado a cidade e nos encontrávamos no trajeto final que nos conduzia a uma visita à morada dos entes que daqui se foram. Era de costume naquela época comprarmos flores numa propriedade próxima àquele local: uma chácara cujo jardim, assim que nele se chegava, o mundo se transformava: a conhecida Chácara do Aquilino.
Beirávamos o aramado da propriedade, quando minha mãe me alertou de nossa parada na sede, em cujo local compraríamos flores. Mamãe desde então me avisava para que em silêncio ficasse assim que chegássemos no local, chamando-me a atenção, também, para que de seu lado não saísse enquanto ali estivéssemos.
Algo impossível de ser cumprido: assim que chegamos à sede e caminhávamos à beira do muro, a fim de adquirir as flores, não conseguia desviar os olhos de tamanha beleza. Por entre as grades, avistava aquela explosão de cores que vinha do jardim, contrastada com o verde das folhas recém-nascidas da primavera e o morno sol que banhava aquela tarde. Dentre as cores, as camélias...
Ah, as camélias... Mamãe havia batido à porta, eu ao seu lado – ainda em transe com toda aquela beleza que se apresentava aos meus olhos – quando uma senhora, já de meia idade, vestida em uma camisa branca e uma saia comprida, na cor azul marinho, sobreposta de um avental, atendeu a porta. Naquele instante, ela e mamãe conversavam e acertavam a compra, enquanto meu olhar e minhas pernas conduziam-me na direção do chafariz, ao centro do jardim. Ali chegando, a sensação era de como se eu estivesse em um mundo à parte: era como se fosse outro tempo, outro momento. 


A profusão de camélias naquele jardim encantava e hipnotizava os olhos de quem quer que ali chegasse, tamanha a gama de cores que delas emanava. As brancas balançavam-se em meio à brisa que soprava do sul, enquanto que as vermelhas, mais abrigadas ao centro do jardim, brilhavam e reluziam com o banho de sol que ora recebiam. As matizadas tinham seu abrigo próximo à casa, e seus tons contrastavam com os contornos da arquitetura da fachada do prédio.
Como que de pronto, mamãe me chamou, já havia comprado alguns ramos de camélias e estava a me aguardar, a fim de seguirmos nosso rumo em direção ao cemitério. No caminho, rememorava aquele belo instante de há pouco, lembrando, também, das histórias que havia lido. Sentia-me tal qual Alice, no momento que retornou do País das Maravilhas.
Hoje, quando passo por ali, tenho o mesmo sentimento que nomeia a avenida cujo trajeto hoje faço e outrora fazia: saudade. Saudade daqueles que se foram, saudades dos belos momentos vividos; saudades daquele jardim, saudades do tempo que não volta mais. Mas algo é certo: permanece vívida, em minha memória, a lembrança. Lembrança das cores, do perfume, da atmosfera mágica daquele local; a lembrança... das camélias da chácara.

*Uma ficção de Elizandro Rodrigues de Rodrigues. Publicada originalmente no Jornal Correio do Sul de Arroio Grande, em 30 de junho de 2016.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Um Simpático Senhor*


Sentado à sala da biblioteca, lá estava. Há pouco, terminara a leitura do penúltimo fragmento de Memórias Póstumas. Era cedo da tarde, e, enquanto descansava em sua poltrona, aquele Senhor encontrava-se pensando na vida, nos seus feitos e conquistas, erros e acertos. Eis que, de repente, alguém bate à porta, abrindo-a logo em seguida, adentrando no recinto.
Era um jovem: cabelos ao ombro, olhos na cor de lago, vestido de branco; era daquelas pessoas das quais se tinha a impressão de que trazia, consigo, uma paz de espírito em largas proporções. Disse-lhe o Senhor:
- Cedo chegastes... Esperava-o para mais tarde.
- Que é o tempo, meu amigo, se não uma ilusão criada para entreter os homens na roda da vida...
- De fato, meu jovem, de fato...
Convidou-o para se sentar ao sofá e fazer-lhe companhia. Em seguida, perguntou-lhe, quase que como externando uma reflexão:
- Meu jovem: antes de chegares, estava, cá, recordando-me de minha trajetória. O avançado da idade nos ocasiona isto: lembranças, lembranças... Será que tudo que fiz, tudo que construí, todo legado que compus... Terá sido suficiente? Terá valido a pena? Pego-me a pensar muito a respeito...
O rapaz, sem hesitar, respondeu-lhe:
- Meu amigo... Toda nossa contribuição e tudo aquilo que fizermos em nossa trajetória sempre terá valido a pena... Não tarda a chegar o momento em que algum iniciado, num futuro próximo, desenvolverá melhor essa filosofia para a humanidade...
Ali ficaram. Conversavam sobre tudo: economia, política, os mais variados assuntos. Experiências de um homem vivido, que por muita coisa passou e presenciou, compartilhadas oralmente com quem trazia junto de si a juventude. E as horas passaram...
Num determinado momento, o jovem interrompeu e lhe disse:
- Meu caro Visconde, é chegada a hora de irmos.
- Oh, sim... Que devo fazer, meu jovem? Devo despedir-me?
- Não são necessárias despedidas, meu caro amigo... Tudo faz parte de um ciclo e de um movimento contínuos.
E foram.
Os dois, juntos, a passos vagarosos, retiraram-se da biblioteca, caminharam pelo corredor e dirigiram-se ao jardim. Em meio à luz, partiram.
E assim tudo segue: pessoas vêm, pessoas vão, coisas acontecem, surgem e ressurgem. É apenas o princípio...


*Uma ficção de Elizandro Rodrigues de Rodrigues. Publicado originalmente no Jornal Correio do Sul, na coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, em 29.10.2015.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Gumercindo Saraiva, o Napoleão dos Pampas (Entrevista)*

Por Elizandro Rodrigues de Rodrigues
 
Litografia de Gumercindo Saraiva. Origem: Wikipédia
Recentemente, a Srª Nádia Costa Botelho das Neves defendeu seu Artigo de Especialização junto ao Programa de Pós-graduação da Unipampa, intitulado “Língua Espanhola pelas Fronteiras de Gumercindo Saraiva”, resultante de uma pesquisa sobre esta importante figura histórica, visando sua aplicabilidade no ensino local. Nádia figura num grupo pequeno de pessoas de nossa cidade que pesquisam sobre Gumercindo, razão pela qual a entrevistei, cujo relato segue.
 
Gumercindo Saraiva. Origem: Wikipédia
Gumercindo Saraiva, além de um personagem histórico, é nome de uma das ruas aqui de Arroio Grande. Antes de realizar a pesquisa, você já tinha conhecimento da figura histórica? De que forma?
Antes não o conhecia, mesmo figurando como nome de uma rua. A associação do nome da rua com a figura histórica se deu quando li o texto Fronterizos, de John Chasteen, momento em que acabei fazendo relação direta do personagem com o logradouro. Isso gerou questionamentos que me conduziram a dialogar com meu orientador, buscando fazer uma pesquisa sobre esse vulto histórico.

Conte sobre sua experiência em pesquisar a respeito de Gumercindo Saraiva para elaborar seu trabalho
Foi uma experiência bastante gratificante, pelo fato de aprender ainda mais sobre a história. Isso só foi possível pelo auxílio que tive de meu orientador e das obras que li a respeito de Gumercindo Saraiva. O que mais me chamou a atenção foi o caminho que ele percorreu, desde jovem, para se transformar nesta figura de tamanha relevância histórica.

O cerne da sua pesquisa visou contemplar um trabalho em sala de aula a partir de elementos histórico-culturais. Como vês hoje, por parte dos jovens, a valorização das pessoas que fizeram a história de nossa cidade
Estamos dentro de uma fronteira, mesmo que não percebamos; essa fronteira nos agracia principalmente no nosso léxico, pois usamos muitas expressões oriundas do espanhol. Pelo fato de fazermos parte desta fronteira, tive como enfoque o fato de não darmos tanto valor à língua espanhola, que deveria ser mais explorada. Não creio que os jovens tenham o devido conhecimento das figuras históricas; mas não é culpa deles, mesmo porque desenvolver o gosto pela literatura é um trabalho árduo, e, na maioria das vezes, às outras áreas do conhecimento é dada maior importância. Se não se repensar a maneira como são vistos o espanhol e a literatura, como esperar que estes jovens adquiram este conhecimento e valorizem quem foram os baluartes que formaram o Arroio Grande?


Ao momento em que terminastes o teu artigo acadêmico, como passastes a relacionar Gumercindo e o Arroio Grande? 
Passei a admirá-lo ainda mais, e, ao mesmo tempo, sentir uma parcela grande de pesar, pois até o momento não vi nada mais a lembrar que ele foi um cidadão arroio-grandense, uma figura histórica de relevância. Nós, enquanto cidadãos, estamos omissos, pois nada se tem feito para rememorá-lo. Acredito que agora que temos os Defensores [do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande], esta falta para com Gumercindo Saraiva será sanada.

*Entrevista publicada originalmente na coluna dos DEFENSORES-AG, do Jornal Correio do Sul, Arroio Grande/RS, em 16.06.2016.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Um Casamento a Recordar*

Igreja de Santa Isabel. Origem da foto: Facebook.
Aquela manhã acordava com certa leveza no ar; minha mãe havia desde o dia anterior iniciado todos os preparativos em nossa casa – o bolo estava confeitado, os quitutes, encaminhados; eu e ela já havíamos buscado meu vestido na costureira, todas as provas foram realizadas e ele estava impecável; a Matriz de Santa Isabel, por sua vez, já se encontrava com sua nave enfeitada em arranjos de madressilvas e rosas brancas, entrelaçados, exalando um agradável perfume no ar. Era um dia de primavera e a brisa abraçava os eucaliptos próximos à nossa casa. Tudo estava pronto para aquele que veio a ser um dos momentos mais importantes de minha vida: era meu casamento.
Meu pai, assim como seus antecessores portugueses, não dispensava um festejo em uma data desse porte: preparou, com o auxílio de meus irmãos mais velhos, um valão ao fundo do pátio, onde seria feito um grande assado após a cerimônia. Enquanto ele organizava, eu e mamãe, juntamente com minha tia, dispomos a mesa para os quitutes abaixo da parreira, esta que, por sua vez, já começava a estender seus galhos por sobre as armações. Após, fomos, todos, prepararmo-nos para a cerimônia.
Depois de prontos, mamãe, papai e todos os demais foram indo à frente, em direção à Matriz – nossa chácara ficava bem próxima ao vilarejo –; lá chegando, entraram pelo portão e, à direita, conduziram-se à sacristia. Ali esperariam a minha chegada, para logo em seguida irem em direção ao altar. Esperava, eu, no alpendre da sede; manico, como carinhosamente chamava meu irmão mais velho, estava terminando de pentear os cavalos da charrete que nos levaria à vila e, consequentemente, à igreja. Finda esta atividade, parou a condução em frente à casa, estendeu-me sua mão, em auxílio para a minha subida ao veículo, desejando-me, logo em seguida, com um olhar fixo em meus olhos, toda a felicidade do mundo.
Ao momento em que chegamos à Matriz, manico foi chamar papai. Este, de pronto, veio até mim e, num sussurro ao pé de meu ouvido, abençoou minha união. De imediato, anunciou, já em início de condução ao portal, que o noivo estava à minha espera num misto de nervosismo e felicidade. Ao rosto, eu expressava uma aparente serenidade, mas hoje confesso que uma certa ansiedade habitava meus sentidos naquele momento.
Adentramos à igreja e todos se levantaram. Enquanto papai me conduzia pela nave, uma Ave-Maria serena e leve era cantada, em tom harmônico ao azul-e-branco dos ornamentos do altar. Em seguida, conduziu-me, junto com meu noivo, à frente do padre. Durante a fala do clérigo, rogava em meus pensamentos aos santos daquele altar que nossa união fosse por eles iluminada. Após colocarmos as alianças, o padre autorizou meu agora marido a beijar-me. Ele levantou meu véu e beijou-me a testa, e, naquele beijo, senti toda a cumplicidade e companheirismo que teríamos ao longo de nossas vidas. Ao momento em que saímos da igreja e após a chuva de arroz, dirigimo-nos para casa, onde continuaria a festa, que perdurou a noite toda. 
Já remonta muito tempo desde então: naquela época, sequer havia chegado até nós a existência do rádio, e nossas noites eram embaladas pela luz de lampiões a querosene somada às histórias que os mais velhos contavam. Porém, bons momentos como este que aqui narrei, guardamos em nossos corações com toda a ternura e com tudo que há de bom em nossas vidas; afinal, o tempo não pode apagar emoções tão ternas e tão marcantes em nós...

*Texto Ficcional. Publicado originalmente em duas partes na coluna dos DEFENSORES-AG, do Jornal Correio do Sul de Arroio Grande/RS, em 18.02.2016 e 25.02.2016.