domingo, 7 de dezembro de 2014

Falco: A Linha Tênue entre Clássico e Popular


Olá. É muito recorrente na crítica contemporânea a postulação de uma possível ruptura entre tradição e popular. Um dos autores que aborda esta questão é o Antropólogo Néstor Garcia Canclini, em seu livro “Culturas Híbridas”. Essa quebra tem suas raízes nas vanguardas do início do Século XX, e, devido à complexidade de pluralidades existentes na cultura contemporânea, por vezes esta diferença se clarifica e, em muitos momentos, se enturvece.

A Linha Tênue: Falco, pseudônimo para Johann (Hans) Hölzel.
Falco é um destes exemplos em que pode-se perceber esta tensão. Músico de formação clássica, nasceu em Viena, na Áustria, berço dos grandes compositores. Contrariando as premissas de sua trajetória acadêmico-musical, acaba por voltar-se às vertentes sonoras contemporâneas à sua época, começando inicialmente em uma banda de hard rock e passando, posteriormente, a um dos precursores do estilo “rap” como conhecemos hoje.
 

Falco, caracterizado como Amadeus (Mozart).

Pseudônimo de Johann (Hans) Hölzel, Falco se interessou pelos sons e ritmos da música rap, tornando-se um dos primeiros na Europa a incorporar tal estilo nas músicas pop e rock. Ele é mais conhecido internacionalmente pela canção "Rock Me Amadeus", de seu álbum “Falco 3” (1985), que se tornou um hit mundial em 1986, atingindo primeiro lugar nas paradas de sucesso em vários países.


Tensão pós-modernas: De um lado, o clássico; de outro, os movimentos musicais contemporâneos. Cena do Clipe "Rock Me Amadeus" (1985).
“Rock Me Amadeus” completará, no ano de 2015, 30 anos de seu lançamento. Inspirada na vida do compositor clássico Wolfgang Amadeus Mozart, gênio da música que viveu no século XVIII, bem como no filme “Amadeus”, produzido em 1984, procura retratar, através de seu arranjo e letra, um aproximamento da condição a qual o compositor em sua época era colocado com a condição em que diversas vertentes da música contemporânea são postas. Em suma, a canção retrata que, da mesma forma que Mozart era tratado, mesmo sendo um gênio incompreendido – genialidade colocada em voga após sua morte e até os dias atuais –, muitos grandes e bons compositores de hoje são marginalizados por produzirem um repertório que foge aos padrões da dita Música Popular – como o Rap, o Hip Hop, o Funk, o Rock e o Heavy Metal.


Cena do Clipe "Rock Me Amadeus" (1985).
Pelo aspecto cultural, “Rock Me Amadeus” quebra com os padrões de produção cultural até então realizados. Através de um limes não rigorosamente demarcado, canção e videoclipe mesclam o clássico e o popular, o antigo e o moderno, procurando de alguma forma deixar elucidado ao expectador e apreciador que, tanto ontem como hoje, as mesmas tensões entre clássico e popular se chocam de maneira constante – e, talvez,  latente.

A seguir, há o vídeoclipe da canção Rock Me Amadeus, em sua versão original, remasterizada. Perceba a forma como é conduzido, de início a fim, a fotografia do clipe. Perceba, também, as inserções de outros elementos do âmbito da cultura, que estabelecem um diálogo contraditório e uma crítica reflexiva bem estruturada da condição cultural em que nos encontramos – tanto hoje, como ontem, como há trinta anos atrás.
 

Aos quarenta anos, em 1998, em um trágico acidente automobilístico na República Dominicana, Falco nos deixa. De novo surge a limes: de um lado, sua vontade de retomar a carreira musical; de outro lado, o seu legado à contemporaneidade. Lastimadamente, a fronteira desta vez, está – e assim ficará – bem estabelecida.

125 Anos do Último Baile da Monarquia Brasileira


Olá. Em nove de novembro do corrente ano, fez-se 1 e ¼ de século do famoso Baile da Ilha Fiscal, que ficou conhecido como o último grande evento realizado pela monarquia brasileira. Em virtude disto, é bom relembrar fatos ocorridos em um acontecimento que influenciou  - direta ou indiretamente – na instauração do regime republicano no Brasil e a consequente queda do império.

Ilha Fiscal - mirada continental. Início do Século XX.
Dia 9 de novembro de 1889, sábado: Em homenagem aos oficiais do navio chileno "Almirante Cochrane", foi realizado um baile na ilha Fiscal, no centro histórico do Rio de Janeiro, então capital do Império. Foi a última grande festa da monarquia antes da Proclamação da República Brasileira, em 15 de novembro, uma sexta-feira, seis dias após o baile. Inicialmente marcado para o dia 19 de outubro, foi adiado por ocasião da morte do Rei Luís I de Portugal (1861-1889), sobrinho de Pedro II do Brasil. O evento, que reuniu toda a sociedade do Império, formalmente homenageava a oficialidade dos navios chilenos ancorados na baía havia duas semanas. Porém, na realidade,  comemorava as bodas de prata da Princesa Isabel e do Conde d´Eu. Além disso, a intenção do Visconde de Ouro Preto, Presidente do Conselho de Ministros, era a de tornar inesquecível este baile, no intuito de reforçar a posição do Império contra as conspirações republicanas. O dinheiro gasto por ele no baile, 250 contos de réis, foi retirado do Ministério da Viação e Obras Públicas, e estaria destinado a socorrer flagelados da seca no Ceará. Além disso, este valor correspondia a quase 10% do orçamento previsto da Província do Rio de Janeiro para o ano seguinte.

"O Monarca escorregou, a monarquia não!" D. Pedro II, em retrato de 1890.
Estima-se que cerca de três a cinco mil pessoas participaram do baile, marcado pelo excesso e pela extravagância: a ilha foi enfeitada com balões venezianos, lanternas chinesas, vasos franceses e flores brasileiras. O movimento dos convidados era constante. Eles desciam das barcas a vapor e eram recepcionados por moças fantasiadas de fadas e sereias. O tilintar das taças de bebida se misturava aos risos e à música. Nunca se havia visto no Brasil tanto luxo. Na parte de trás do palacete foram montadas duas mesas, em formato de ferradura, onde foi servido um jantar para quinhentos convidados, sendo 250 em cada uma delas. Entre as iguarias, servidas em pratos ornamentados com flores e frutas exóticas, foram consumidos 800 kg de camarão, 300 frangos, 500 perus, 64 faisões, 1.200 latas de aspargos, 20.000 sanduíches, 14.000 sorvetes, 2.900 pratos de doces, 10.000 litros de cerveja, 304 caixas de vinhos, champagne e bebidas diversas. Uma banda, instalada a bordo do "Almirante Cochrane", o navio homenageado, tocou valsas e polcas madrugada adentro.

Menu do Baile.

"Dançou-se muito no baile da Ilha Fiscal, mas o que os convidados não imaginavam, nem o imperador D. Pedro II, é que se dançava sobre um vulcão. À mesma hora em que se acendiam as luzes do palacete para receber os milhares de convidados engalanados, os republicanos reuniam-se no Clube Militar, presididos pelo tenente-coronel Benjamin Constant, para maquinar a queda do Império. "Mais do que nunca, preciso sejam-me dados plenos poderes para tirar a classe militar de um estado de coisas incompatível com sua honra e sua dignidade", discursou Constant na ocasião, tendo como alvo justamente o Visconde de Ouro Preto. Longe dali, ao lado da família imperial, o visconde desmanchava-se em sorrisos ao comandar seu suntuoso festim. A família imperial chegou ao cais pouco antes das 10 horas. D. Pedro II, fardado de almirante, a imperatriz Teresa Cristina e o príncipe D. Pedro Augusto embarcaram primeiro. Quinze minutos depois foi a vez da princesa Isabel e do conde D’Eu. Uma vez no palácio, foram conduzidos a um salão em separado, onde já se achavam reunidos membros do corpo diplomático estrangeiro oficiais e alguns eleitos da sociedade carioca. O guarda-roupa da imperatriz não chegou a causar impressão especial entre os convidados - um vestido de renda de chantilly preta, guarnecido de vidrilhos. A toalete da princesa Isabel, no entanto, causou exclamações de admiração pelo luxo e pela beleza. Ela portava uma roupa de moiré preta listrada, tendo na frente um corpinho alto bordado a ouro. Nos cabelos, carregava um diadema de brilhantes”.

Ingresso de acesso ao Baile.

Um fato irônico, até hoje não confirmado, ocorreu logo após a chegada da família real, às 10 horas da noite: conta-se que D. Pedro II, ao entrar no salão do baile, desequilibrou-se e levou um tombo. Foi amparado por dois jornalistas. Ao recompor-se, exclamou: O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu! Apesar do sucesso do baile, o imperador pouco se divertiu. Ficou sentado o tempo todo e foi embora à 1h da manhã, sem jantar.

Uma foto do último baile: Decoração da área interna do prédio da Ilha Fiscal, horas antes de sua realização.
Outro acontecimento curioso ocorreu no término da festa. Às 5 horas da manhã, após a saída dos convidados, os trabalhos de limpeza revelaram alguns artigos inusitados espalhados pelo chão: além de copos quebrados e garrafas espalhadas, foram recolhidas condecorações perdidas e até peças de roupas íntimas femininas. O fato pode, entretanto, ser fictício, uma vez que foi relatado na coluna humorística Foguetes, do periódico carioca "O Paiz", no dia 12 de novembro.


Ilha Fiscal no dia do último baile do Império (1889, óleo sobre tela, Francisco Joaquim Gomes Ribeiro.)
Em 1905, Aurélio de Figueiredo e Melo, em homenagem à realização do Baile, pintou o quadro intitulado “A Ilusão do Terceiro Reinado”, do qual pode-se ler a respeito em postagem anterior feita neste blog, clicando aqui.


A Ilha Fiscal, nos dias atuais.
 
Espero que tenham gostado. Até a próxima!

quarta-feira, 11 de junho de 2014

OS SENTIMENTOS E SEUS DESLIMITES*

Nádia Costa Botelho das Neves**
 
Capa do Livro "Os Limites do Impossível". Origem: Google.
No romance “Os limites do impossível – contos gardelianos”, do autor Aldyr Garcia Schlee, há a representação das “mulheres que amam” o personagem Carlos Escayola. São elas Juana, Rosaura, Manuela, Felícia, Berta e La Madorell, mulheres que foram capazes de se desviarem moral e socialmente, demonstrando comportamentos contrários aos padrões da sociedade da época, tudo para terem a atenção e o amor do protagonista. Essas mulheres, ao transgredirem o comportamento social, esperado pela cultura patriarcal, demonstram que valorizam mais seus sentimentos do que as convenções. O amor a Carlos Escayola é confundido algumas vezes com prazer, luxúria ou simplesmente a sublimidade contida neste sentimento.
As personagens femininas não se restringem ao ambiente interno da casa, elas demonstram seus sentimentos como desejo, amor, ira, etc; também no espaço público, território masculino, onde a política, a luta e os vícios são permitidos. Tal comportamento indica a atualidade das narrativas, pois apesar da trama ocorrer na passagem do século XIX para o XX, as dores e os amores das mulheres é que estão no centro do romance. Essa atualidade fica evidente porque ao denunciar o modo como àquela sociedade lidava com as mulheres, entendemos um olhar contemporâneo, momento no qual a sociedade está mais aberta para discutir os direitos femininos.
Assim, teremos um enredo que contempla os desejos, os amores, as amizades; enfim, as emoções femininas que na época eram abafadas pela comunidade. É o caso de Juana, a mulher mais velha, com 36 anos de idade, apresenta-se tendo duas filhas em idade casadoira. Ao conhecer Carlos, ainda moço e recém-chegado à Vila de San Fructuoso, com aproximadamente 21 anos de idade, ela percebe logo seu caráter. Era casada com Tano e, por isso, se sujeitou a oferecer sua própria filha em matrimônio para manter o relacionamento com o moço garboso e viril. Apesar de tal atitude, o conquistador a relega ao segundo plano. Mesmo casando-se com Clara, a primogênita de Juana e Tano, Carlos mantinha seu interesse em outras conquistas.
O relacionamento incestuoso com Juana, sua sogra, resultou no nascimento de Maria Lélia ou La Niña. Entretanto, para a sociedade em geral, bem como para a família, a menina era fruto da união legítima de Juana e Tano, tanto que o genro, Carlos Escayola, tornara-se padrinho da menina.
O romance demonstra que Escayola não conseguia sequer ser fiel à sua esposa e à sua amante, pois não permanecia muito tempo com a mesma mulher. Com a morte de Clara, Juana não consegue mantê-lo por perto. Ele se afasta da sogra e segue viagem com uma nova parceira, Rosaura, moça que retirou de um circo equestre.
As lembranças vêm a Juana como num flashback. O desejo latente por um homem que não era seu marido a levou a cometer desatinos em nome de um amor passageiro, que deixou apenas marcas profundas de destruição na vida de seus familiares. Ela usou todos os ardis possíveis para conquistá-lo; por esta paixão desvairada, Juana obriga a própria filha Clara a casar com Carlos para que ele pudesse estar ao seu lado, para não perdê-lo. No entanto, não consegue controlar suas emoções e chega a odiar sua filha por possuir aquele a quem ama. Juana sente-se perdida porque Carlos não vive com ela e para ela, e ninguém pode saber o que a criança representa em suas vidas. O seu desvio de conduta pesa de tal forma sobre ela que acaba enlouquecendo lentamente, cega pela raiva e pela dor de não poder revelar ao mundo o seu verdadeiro amor. Juana acaba sem Carlos e sem a filha, o que reforça mais a sua instabilidade, tornando-a lentamente cada vez mais louca.
Se Juana perde sua lucidez, Rosaura perde sua alegria e liberdade. A jovem sorridente trabalhava no circo equestre, que tinha chegado à cidade de San Fructuoso. Era uma moça de gestos largos, vestida com roupas insinuantes que mais mostravam do que escondiam o seu corpo. Seu trabalho, de pouco valor, pois se limitava a segurar a corda presa ao buçal do cavalo, lhe permitia conhecer vários lugares e não fixar raízes. Essa liberdade acaba quando resolve viver com Carlos, que havia recentemente ficado viúvo e com duas filhas pequenas, as quais deixou aos cuidados da cunhada, Blanca. O casal viajou e Rosaura o acompanhou como se fosse sua mulher e no percurso foi feliz, inclusive recebendo presentes valiosos, como uma petaca de veludo bordada em ouro, que no princípio estava vazia, mas que a cada dia da viagem Carlos lhe presenteava com uma pedrinha de ouro, lembrança dos dias inesquecíveis.
O idílio que foi a longa viagem ao extremo da fronteira ainda perdura em Rosaura, enquanto ela se instala na casa luxuosa de veraneio em San Gregório. Nessa casa, ela ficaria a espera de Carlos, passando-se por caseira. Isso já pode ser visto como uma perda, na medida em que não era reconhecida como esposa; porém, a perda é maior porque ela passa a ser insignificante para Escayola.  A carta que recebe de Carlos deixa evidente sua posição de desnecessária, pois na missiva descobre que ele havia casado com Blanca, irmã de sua finada esposa.
Em detrimento da manutenção da unidade familiar, Carlos trocou o amor de Rosaura pela sua cunhada. Apesar disso, o sentimento de Rosaura ainda sobrevive, mesmo quando descobre tardiamente que ele havia seduzido La Niña, sua “afilhada”. As atitudes insensíveis e cruéis de Carlos não diminuem a afeição que ela sente e, inclusive, aceita o encargo de cuidar de Maria Lélia.
A moça que outrora era sorridente e que por um curto espaço de tempo foi feliz ao lado de Carlos, por amor foi capaz de abandonar seus sonhos, sua profissão, sua liberdade; submeter-se a caseira e ama; esconder seus sentimentos, pois nem seus amigos mais próximos sabiam de seu relacionamento com Escayola; enfim, tornar-se como uma viúva resignada a esperar o milagre do retorno de seu homem – que acontecia quando ele queria e podia – o que era raro.
As mulheres que amam Carlos são diferentes em vários aspectos: idade, situação financeira, cor, posição social e religião. Juana e Rosaura eram mulheres fortes que dominavam suas vidas, mas que não conseguiram dominar seus sentimentos. Manuela e Felícia eram inferiores socialmente, pois eram empregadas e ambas também sofreram por suas escolhas. 
Manuela tinha quinze anos de idade quando sua mãe e seu pai foram trabalhar na estância Santa Blanca. Apesar de sua mãe a vigiar e a prevenir para que não se aproximasse do dono da estância, pois era homem que se metia com as mulheres por bem ou por mal, isso a incitou a aguardar com sobressalto pela chegada de Carlos. Ela vivia imaginando como seria aquele homem. Manuela se envergonha quando é notada por ele, pois o achou bonito. Ele a tratava bem, sabia o nome de seus pais, era alegre e contagiava a todos. Manuela entregou-se sem medo, pois via nele o homem que despertava nela os segredos do amor e do desejo e sentia-se amada e valorizada pelo modo que era tratada.
 Sua entrega a Carlos foi por vontade própria, seu amor era desmedido mesmo sabendo das atitudes pouco convencionais do seu amante. Apesar de castigada pelos pais, mantinha o sentimento. Somente Carlos a possuía, para outros conservava sua postura virginal, intocável. Manuela era diferente, mesmo com corpo de mulher, não lhe davam a idade precisa, ela guardava a pureza de criança, a pureza de donzela; não encorajava ninguém, não levantava os olhos, ignorava a todos.
Distinta de Juana e Rosaura, Manuela nunca se iludiu, não se sentia desonrada, não ignorava que Carlos era casado e tinha três filhos com Blanca, além das duas filhas do primeiro casamento, e os outros tantos fora. Quando ela perde seus pais, o coronel leva-a para a casa da fazenda. Fica na estância comandando, como se fosse dona, apesar de jamais ter se interessado em sê-lo, afinal, ela queria apenas ele.
Manuela não tinha nem a rigidez moral de Juana e nem o sonho de liberdade de Rosaura, por isso cuida e trata tanto de La Niña como do seu filho com Carlos que nascera. Não pede explicação, somente acata o pedido do coronel feito por carta. Manuela trata o bebê como se fosse seu filho pelos três primeiros anos e, quando ambos já estavam apegados, a criança é levada por Berta, uma corista de cabaré, para Buenos Aires.
Manuela representa aquela que não tinha nada a perder, tanto por sua situação social como pela sua forma de pensar, mas mesmo assim, Carlos consegue causar nela o sentido da perda. Manuela era estéril e a afeição com a criança supria seu anseio pela maternidade. Ela nunca pediu a Carlos mais do que ele pudesse lhe oferecer, jamais fez cobranças ou perguntas, aceitou como suas as decisões e pensamentos dele, como se ambos de fato fossem um só ser, conscientes das vontades e desejos um do outro. Ela manteve-se íntegra em suas convicções, em seus desejos. Tinha claro que não poderia possuir o amor de Carlos, mas poderia ter sido mãe, mesmo de um filho incestuoso.
Manuela nada precisou fazer para despertar a atenção do patrão. Ao contrário, seus pais diminuíram sua idade como forma de proteção, para passar despercebida aos olhos de Carlos. Porém seu corpo adolescente mostra a verdade. Felícia, pelo contrário, possui o desejo pelo “patrãozinho” e usa dos rituais primitivos de sua religião para que ele a perceba.
Felícia é mucama negra, magra, ágil e sempre vestida de branco, da saia até o pano enrolado na cabeça. Ela é jovem, faceira, perfumada e obediente. É a primeira a levantar todas as manhãs para esperar o leiteiro e o aguateiro. Ela sabe de tudo que se passa na casa e tenta contar a sua mãe, que não acredita nas suas histórias.  É através do amplo passadiço da casa que Felícia percebe as relações de Carlos com as várias mulheres da casa:
“- Sabes que Clarita (sim, nha Clarita, a patroninha Clara, doña Clara), recém antes de casar-se com o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão don Carlos), a patroa doña Clara, sendo ainda moça solteira e sem ao menos imaginar que ia casar-se com o patrão don Carlos, ela  levantava bem cedo, de  manhã(eu via), ela corria todas as manhãs até a porta (eu via), ela levantava bem cedo e corria todas manhãs a esperar (eu via), corria a esperar...”
“- Sabes que Blanca (sim, nhá Blanca, a patroninha sinhá Blanca), antes de casarem doña Clara com o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão Don Carlos), a patroninha doña Blanca, quando ainda nem se sabia que iam casar doña Clara com o patrão Don Carlos, quando doña Clara também era solteira, moça solteira, moça donzela como ela e como eu... admirava-o.”
“- Pois sabes que a patrona velha (sim, siá Juana, a patrona doña Juana do patrão velho), desde antes de se casar o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão Don Carlos) com a patroninha Clarita (sim, a patroa doña Clara), quando nosso serviço ainda era todo só na casa dele; e, depois, até depois do casamento dele com doña Clarita, agora, ele e ela, doña Juana (ele, Don Carlos; e ela, doña Juana) os dois...” (SCHLEE, 2009, p. 33-34).
A passagem acima demonstra que a mucama foi testemunha dos encontros clandestinos de “sinhá” Juana com Carlos e da paixão de Clara pelo tambeiro. Ela é expectadora silenciosa do que ocorre dentro das paredes da casa grande da família, dos dois lares geminados que se transformam em um só e onde não há empecilhos para conquistas proibidas e desfechos. Para Felícia, é um tormento e uma agonia não ter credibilidade, pois mesmo sua mãe não acredita em suas histórias imprudentes e indecentes.
Ela vive entre a cólera de não ter credibilidade e a indignação de não ser percebida. Felícia representa a mulher insignificante, sem direito à liberdade e aos sonhos, sem direito a constituir família; ela é a propriedade de um homem branco, rico, respeitado pela sociedade. O seu jugo não será mais leve ao tornar-se amante do patrão, pois pior que as outras, ela não terá a mínima atenção. O sentimento de menosprezo a leva a se utilizar das práticas de magia (“vodu”) para que ele lhe dê atenção.
Se Manuela e Felícia, ambas subalternas, se utilizam de estratégias distintas para angariar a atenção do patrão, uma através do corpo e outra através da magia, Berta, também subalterna, se diferencia delas por conquistá-lo pelo atrevimento e por sua falta de pudor.
De origem francesa, Berta era bonita, insinuante, atrevida e tinha em torno de dezoito anos. Ela revelava altivez e certa arrogância, o que para as pessoas sugeria inoportuna. Ela é descrita com movimentos invulgares e inusitados, com gestos excitantes e perturbadores, com voz misteriosa e enigmática, com olhar coruscante e insidioso.
Berta passará das funções domésticas a protegida de Victor d’Olivier, engenheiro formado que comandava a poderosa Compagnie Française d’Or de L’Uruguai, e foi levada para a zona de mineração, passando a viver com ele, que mandava despoticamente. Berta é um presente de Victor a Carlos, que a leva para sua própria casa como lavadeira e engomadeira. Por sua competência nos afazeres domésticos, Berta desperta o ciúme de Blanca, e, para evitar brigas, Carlos leva-a para o cabaré “La Rosada”. Berta torna-se a sensação do estabelecimento e ele, descontente com sua popularidade, tira-a de lá e a instala em uma casa perto de onde reside.
Longe de seu convívio de costume, Berta sofre pela angustiante espera, por mais de um ano, sem ter com que se ocupar. A revolta por essa situação a leva a trair Carlos, que descobre e faz com que ela retorne ao cabaré. Lá, colocada entre as coristas, é a que mais se sobressai.
 O desgosto de Berta, por voltar à antiga situação, resulta-lhe a lucidez necessária para entender que está completamente só, abandonada, triste, sem ter ninguém que de fato lhe aceite e a admire, ou seja, sente-se desamparada. A jovem que antes era alegre, cheia de energia, torna-se cansada, impotente e sujeita a conviver com homens estúpidos, bazofeiros, velhos e impotentes. Perde a proteção de Carlos quando é mandada embora, mas o coronel lhe entrega a Jorge, nome que deveria dar ao filho incestuoso, que ele teve com a “afilhada”.
Berta carrega consigo o valor de três mil pesos e a garantia de ajuda permanente, caso ela não fale para ninguém sobre a criança. O menino, que recebe o nome de Carlos, era a única segurança que ela possuía. A mulher que antes era autoconfiante agora tem que construir sua vida sem a ajuda de ninguém. É essa pessoa que supostamente foi mãe de Carlos Gardel.
Carlos Escayola usa as mulheres e consegue tirar delas o que cada uma mais deseja. Assim como Juana, Rosaura, Manuela e Felícia, Berta perde na relação com o coronel. Em seu caso é a segurança, a esperança de poder envelhecer sob a proteção de alguém, o que não ocorre, pois além de não conseguir um abrigo teve de cuidar do filho de quem o abandonou.
Quem encontra a proteção de Carlos é Pilar, que por seu turno desejava não a segurança, mas a fama. Ela foi tratada como esposa, mãe, companheira e amiga; entretanto, o que mais desejava não conseguiu. Pilar Madorell almejava ser uma grande estrela nos palcos de teatro, mas foi apenas a substituta eventual, tanto nos palcos como na vida de Carlos. Ela preencheu mais uma lacuna na vasta coleção de mulheres. Para Pilar, esse homem representa o que jamais tivera, por isso sente-se atraída e não se importa com o que dele falem.
Carlos a levava à Capital nas casas de chás, confeitarias e salões de café-concerto. Assim como Berta, que recebeu o que sonhava e depois perdeu, Pilar encontra nele o parceiro que tinha forma e jeito de fazê-la sentir-se a mulher que sempre quisera ser. As longas cartas que escrevia para justificar sua ausência indicam o cuidado e carinho que Carlos tinha por ela. Essa atenção durou pouco tempo, pois ela percebia o interesse dele pelas outras mulheres. O sonho de glamour de Pilar termina quando o gentil general Santo sofre um atentado e escapa por pouco da morte. Apesar do prestígio de Escayola desaparecer subitamente e Pilar ampará-lo do falecimento de La Niña, ela não consegue conquistá-lo e continua sendo apenas suplente. Ocorre que a perda da esposa desestabilizou o coronel, que sempre comandou a situação.
Pilar vive o sonho de Manuela porque é mãe dos filhos menores de Carlos, o sonho de Juana e Felícia, pois é companheira de Escayola. Convivem juntos até 1911, porém não consegue realizar seu sonho de ser atriz e de ser reconhecida. Pilar, assim como Juana, Rosaura, Manuela, Felícia e Berta, sacrifica algo de sua vida em detrimento do amor de Carlos; entretanto, nenhuma conquistou seus desejos e de um modo ou outro só lhes resultou a solidão, a desilusão.

Elas transgrediram a moral, perderam a liberdade e seus sonhos, deixaram-se levar pela paixão, pela ilusão da felicidade junto a um homem que nunca se comprometeu de fato com nenhuma delas, pois era inconstante. Só colheram desalentos, destruíram seus casamentos, perderam o brilho dos palcos, o sucesso, bem como a juventude e a beleza, tudo a espera de uma mudança que significasse a verdadeira felicidade, algo que nunca aconteceu.

Referência Bibliográfica
SCHLEE, Aldyr Garcia. Os limites do impossível – Contos gardelianos. Porto Alegre: ARdoTempo, 2009.

* Capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso "Os Impossíveis Limites dos Sentimentos em 'Os Limites do Impossível'", apresentado ao Curso de Letras da Unipampa em 2013, gentilmente cedido pela autora para publicação no Blog.
** Graduada em Letras - Português/Espanhol e Respectivas Literaturas pela Unipampa - Jaguarão/RS.

sábado, 12 de abril de 2014

Um Assassinato a Sangue Frio



Capa do livro, recentemente lançado pela editora Companhia das Letras (2013).
Precisamente as dez horas da noite, de uma sexta-feira qualquer deste ano, terminei de ler o livro “A Sangue Frio”, do escritor norte-americano Truman Capote. Precursor no gênero romance de não ficção, Capote aborda nesta narrativa a história real de um brutal assassinato de quatro integrantes de uma respeitada família de uma pequena cidade no oeste do Kansas.
15 de novembro de 1959. Esta data ficou marcada na trajetória de Truman Capote e dos moradores da pequena Holcomb, Kansas, cidade que, à época, contava com pouco mais de 260 habitantes. Quatro membros de uma respeitada família da pequena cidade foram assassinados. Herb Clutter, o patriarca da família, tinha 48 anos e era um fazendeiro muito estimado na comunidade. Bonnie Clutter, sua esposa, era três anos mais nova e sofria de "problemas psicológicos". O casal vivia com os dois filhos mais novos, Kenyon e Nancy, ainda adolescentes. Os quatro foram amarrados e amordaçados (Herb também teve a garganta cortada); depois, foram mortos a tiros de espingarda. O acontecimento abalou a todos e a notícia do ocorrido espalhou-se por todo o país em questão de dias. Poucos dias após a tragédia, Truman Capote, em seu apartamento, pela parte da manhã, lê uma pequena nota sobre o ocorrido no The New York Times. De imediato, o fato ocorrido o chocou e o fez, um mês após o assassinato, chegar a Holcomb e entrevistar familiares das vítimas e dos assassinos, recolher documentos oficiais, ler cartas e diários, observar e assistir ao julgamento e sentença dos criminosos.

Membros da Família Clutter assassinados. Em sentido horário: Herb, patriarca, Bonnie, matriarca, e os filhos Nancy e Kenyon. Origem: internet.
Os assassinos Richard Hickock e Perry Smith, aguardando julgamento. Origem: internet.
Dick e Perry, como eram conhecidos, em foto retirada no momento em que foram capturados e levados à prisão. Origem: internet.

O livro consiste em um relato extremamente detalhado do acontecido, desde a ideia inicial do crime até a execução dos assassinos. Com seu talento e maestria na arte de escrever, o escritor e cronista norte-americano desenvolve uma narrativa em que intercala os acontecimentos com uma fiel descrição das ações, tanto dos assassinos, como da rotina dos integrantes da família assassinados, traçando, em paralelo à história, um exato perfil psicológico dos assassinos. O texto toma fôlego à medida em que vão se explicitando os acontecimentos. Capote intercala momentos de plena descrição dos atos tais quais o são, com instantes a que atribui, em dose exata, total maestria literária às descrições daquilo que não é concreto e exige a habilidade do escritor para assim torná-lo. Capote faz, desta forma, uma costura perfeita entre os acontecimentos reais e os instantes em que recorre aos recursos diegéticos, numa simbiose tão perfeita que, além de passar por vezes despercebida ao leitor, não descaracteriza os acontecimentos reais presentes no livro. O ponto alto do romance constitui o momento em que os policiais encontram os assassinos, levam-nos ao departamento de polícia e realizam uma sabatina com cada um deles.

Truman Capote com um dos assassinos, Perry Smith, em foto da época. Origem: internet.

Com as informações coletadas, o autor escreveu um "romance não-ficcional", considerado a primeira obra do New Journalism. Em 1965, a Revista The New Yorker publicou o último dos quatro capítulos escritos por Capote sobre o assassinato da família Clutter. Batendo recordes de vendas da revista, em janeiro de 1966 o romance saiu em formato de livro.

Cartaz do filme "A Sangue Frio", de 1967. Origem: internet.

            No ano seguinte, o diretor Robert Brooks dirige o filme “In Cold Blood” (A Sangue Frio), baseado na obra de Capote e estrelado pelos atores Robert Blake e Scott Wilson. O filme não deixa perfeitamente claro quem eram as verdadeiras vítimas do episódio: se as pessoas mortas brutalmente ou seus executores, dois ex-condenados, vítimas da crescente desumanidade das prisões.[ O diretor Brooks, também autor do roteiro, adicionou ao material de Capote um flashback freudiano de dezoito minutos, com o intuito de esclarecer as circunstâncias que levaram os criminosos a consumar a tragédia. A fim de conseguir maior realismo, “A Sangue Frio” foi rodado quase inteiramente nos locais onde aconteceram os fatos e em austero preto e branco. Brooks evitou a todo custo o glamour típico de Hollywood e construiu uma narrativa sem sensacionalismo, sóbria porém atraente. Todos esses elementos reunidos resultaram em um absorvente semidocumentário, detalhado e cuidadosamente pesquisado.

Os atores Cliffton Collins Jr. e Philip Seymour Hoffman, nos papéis de Perry e Capote, respectivamente, no filme Capote (2005). Origem: internet.

Em 2005, o diretor Bennett Miller produz um filme biográfico sobre Truman Capote e o faz através de uma revisita ao caso Clutter, contando, dessa forma, a história do escritor e cronista a partir deste trabalho literário que projetou a obra de Capote mundialmente. O filme recebeu um prêmio Oscar em 2006 na categoria Melhor Ator, sendo vencedor o ator Philip Seymour Hoffman, por encarnar de forma fidelíssima o papel do escritor. Surpreendeu por tamanha semelhança entre ator e personagem real.

 Sem dúvida, um livro imperdível. Sua leitura é merecedora de nossa atenção, tanto pela singularidade do acontecimento narrado, quanto pela genialidade e maestria literária desenvolvida por Truman Capote ao longo das páginas. A todos que se aventurarem literariamente por este romance, desejo uma ótima leitura!