quarta-feira, 21 de abril de 2021

VISÕES DO ARROIO GRANDE

Olá, caros leitores do blog, saudades de todos. 

Na sequência, compartilho com vocês 'Visões do Arroio Grande', coletânea de fotografias divulgadas em rede social entre os meses de agosto e setembro de 2019. Espero que apreciem.

Vetusto prédio situado à esquina das Ruas Zeca Maciel e Doutor Monteiro.

Prédio situado à esquina das Ruas Dom Pedro II, esquina Herculano de Freitas.

A torre da Igreja Matriz, captada desde os fundos do quarteirão, pela Rua Dom Pedro II.

"Choveu na roseira": vetusto prédio situado à Rua Zeca Maciel, esquina Júlio de Castilhos.

A torre da 'Voz dos Pampas', antigo meio local de difusão de notícias, captada desde o canteiro central  da Rua Osmar Machado, em tarde primaveril.

Icônico prédio central, situado à Rua Dr. Dionísio de Magalhães, esquina com a Rua Júlio de Castilhos.

Esquina das Ruas Osmar Machado e Marechal Floriano.

A torre da Igreja Matriz, captada desde a Avenida Nossa Senhora das Graças.

Outro registro da 'Voz dos Pampas': desta vez, o contraste da torre com o sol vespertino.

Jardim da 'Chácara das Camélias', situada à Avenida da Saudade. 

Todos os registros foram realizados na zona urbana do Município de Arroio Grande/RS, Brasil.

Espero que tenham apreciado. 

Até a próxima!

A FLOR DOS CAMPOS NEUTRAIS - II


Do navio se avistava ao longe a enseada e o Porto de Pipas, na Ilha Terceira, no Açores. Jeremias observava pelo convés do navio a embarcação aproximar-se da costa, ansioso por chegar à sua terra natal. Havia sido uma viagem muito longa; desde aquele domingo em que esteve no Curato de Nossa Senhora da Graça do Arroio Grande e reencontrou velhos conhecidos, não pensara em mais nada senão ir, o mais breve possível, ao encontro de Aurora. Obstinado pela ideia, em pouco tempo juntou uma quantia suficiente para deixar suas questões locais em ordem e partiu, através do Porto de Rio Grande, na direção dos Açores e de sua amada. Ao atracar em terra firme, Jeremias foi na direção da residência de seus familiares, em que foi recebido com um abraço caloroso de todos; após, partiu em busca de sua flor, Aurora. Ao encontrá-la, os dois se olharam e perceberam que o afeto que sentiam um pelo outro ainda estava vivo e cada vez mais fortalecido. Em pouco tempo, casaram e navegaram para o novo continente, de onde não mais retornariam. Ao chegar no cais do Porto de Rio Grande, acompanhada de Jeremias, Aurora encantou-se com a nova terra que a partir de então seria sua morada; na viagem rumo à propriedade do casal, a jovem observava atentamente a paisagem, encantada com o verdor dos imensos campos que compunham a planície litorânea do sul do Continente de São Pedro: nunca havia presenciado um cenário sequer parecido com aquele. Sentia que, naquelas terras, Jeremias e ela seriam muito felizes. O tempo passou; o moço, agora acompanhado de sua flor dos campos neutrais, muito trabalhou, incentivado e esperançoso por um futuro belo e promissor ao lado de Aurora. A luta foi árdua; ambos dedicaram muito de si e, consequentemente, fizeram melhoramentos na propriedade, desenvolvendo-a. Começaram, assim, a produção de charque, o que lhes garantiu o sustento. Tiveram três filhos, dois meninos e uma menina – Clara, João e Pedro –, os quais, a medida que cresciam, participavam cada vez mais da rotina de trabalho dos pais, aprendendo, assim, a valorizar o laboro e todas as conquistas a eles legadas. Seguidamente, Jeremias e Aurora, acompanhados dos filhos, faziam percurso a bordo de uma carreta à então Freguesia do Arroio Grande, com a finalidade de visitar os conhecidos e acertar algumas questões relativas aos negócios da família. Observavam o quanto crescia, a passos largos, aquele povoado; o casario aumentava em número e a população acompanhava o ritmo de crescimento. Mais frequentemente, a família frequentava a vila de Santa Isabel, pelo fato de ser muito próxima da propriedade em que moravam. O local passava por uma onda de prosperidade, por vezes mais intensa que a da Freguesia do Arroio Grande; o comércio desenvolvia-se com certo fôlego, o porto funcionava com devida frequência, as casas, em certo número, dispunham de alguns luxos e requintes somente vistos a muitas léguas dali; a vila possuía, ademais, um rígido código de posturas, definindo, dentre muitas disposições, o traçado e largura das ruas e calçadas – algo muito avançado para a época. Até mesmo o Imperador e sua comitiva visitaram a vila – ocasião na qual Jeremias e sua família no local estavam e presenciaram o evento –. Os anos corriam com alegria e felicidade para aquele casal e seus filhos; estes, agora adultos, zelavam pelos pais, a quem a velhice encontrou. Estava, agora, a família toda residindo na freguesia, em uma casa de boas condições – os negócios estavam equilibrados, o que lhes permitiu certas concessões –. Participavam, todos eles, da missa alusiva à emancipação da nova Villa do Arroio Grande, que surgia em lugar da freguesia. Durante a celebração, Jeremias e Aurora se olhavam, olhos nos olhos; ambos, felizes e emocionados, lembravam com saudosismo de tudo pelo que passaram juntos. Afinal, a trajetória havia valido a pena...

*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 08.11.2019. Foto ilustrativa - acervo de imagens do Google.

sábado, 2 de maio de 2020

A FLOR DOS CAMPOS NEUTRAIS - I*


Fazia poucos anos que a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ganhara seus contornos tais quais conhecemos hoje; contudo, muito tempo demandou para que de fato as fronteiras do sul fossem definidas e apropriadas com exatidão. Por certo período após a formação da província e consequente separação do território oriental, que hoje forma o Uruguai, a larga faixa de terras situada ao sul do Rio Piratini ficou conhecida como “campos neutrais”, terras de ninguém. Muitos se aventuraram durante aquele período, a fim de desbravar o território até então por muitos desconhecido e que, aos poucos, começara a ser povoado, fosse através das guarnições militares, instaladas com a finalidade de delimitar e defender as fronteiras, fosse com a doação de sesmarias àqueles que vinham ao novo continente em busca de conquistar seu pedaço de chão e trabalhar, visando plantar e colher os frutos que a terra lhes ofertasse. Um deles era Jeremias: homem jovem, de médio porte e estatura, viera do arquipélago de Açores em busca de trabalho e, nestas terras, encontrara acolhida. Em pouco tempo de estada no novo continente, com rápida passagem pela Ilha do Desterro e após, por mais de três anos, em Rio Grande, conseguiu juntar algumas economias trabalhando no cais e, por ocasião do destino, foi agraciado com uma pequena porção de terras próxima a uma vila há pouco surgida às margens do São Gonçalo; ali, construiria um pequeno rancho de palha de santa-fé acompanhado de um sortido roçado e iniciaria, a passos curtos, a criação de gado, atividade que lhe seria seu principal sustento. Passava ele a maior parte do tempo em plena solidão, acompanhado apenas do árduo trabalho, do qual encontrava sossego ao avistar o verdor da paisagem campestre ao horizonte, em contraste com o azul celeste das tardes de verão. Tal cenário lhe trazia à mente muitas lembranças. Entre elas, a do rosto de Aurora, sua amada e prometida; a moça de pele clara e cabelos escuros, ondulados e compridos que deixara do outro lado do Atlântico, com a promessa de um dia voltar para a ela buscar: à beira do mar que banha o Porto de Pipas, na Ilha Terceira, olhando no fundo dos olhos castanhos da moça, Jeremias jurou seu amor e selou a promessa. Naquele porto, ao som da batida das pequenas ondas esverdeadas do mar a seus pés, o casal se beijou, banhados, os dois jovens, pela luz dourada do sol poente; um dia ele não tardaria a cumprir o prometido. Apesar de a pouco tempo instalado na província, Jeremias afeiçoara-se aos usos, costumes e vestimentas locais com certa facilidade. Em especial, assimilara com muito gosto o uso da bombacha e a prática de sorver um amargo em seguida que o dia amanhecia. Sua sesmaria possuía um pequeno acesso à margem do São Gonçalo, o qual era rodeado por muitos juncos e gravatás; porém, um pequeno corredor lhe permitia o acesso ao leito do canal, do qual fazia uso por meio de uma canoa. Certo dia de sol, o jovem decidiu que navegaria pelo São Gonçalo, a fim de realizar uma pescaria. Saíra em sua canoa na direção da Lagoa Mirim, de onde sua sesmaria ficava próxima, navegando ao sabor da brisa daquela manhã ensolarada. Encantara-se com a paisagem; previra que, no futuro, aquela região seria próspera. Muito Jeremias navegou até que, quando o sol estava à plena altura, sinalizando a aproximação do meio-dia, deparou-se com o que lhe parecia ser a foz de um arroio. Por ela embrenhou-se e, horas depois, vencendo com certa facilidade a fraca correnteza daquelas turvas águas, veio a dar em um pequeno povoado que ora se formava às suas margens. Ali desceu, a fim de conhecer o lugar. Possuía pouco casario e uma pequena capela de pedra, esta que começava a ser ampliada com a finalidade de acolher mais fiéis. Aquele povoado situado às margens do arroio Grande, que ora começava a tomar forma, era o Curato de Nossa Senhora da Graça do Arroio Grande. Depois de um tempo caminhando pela localidade, o moço encontrou dois senhores advindos dos Açores, cujas fisionomias não lhe eram de todo estranhas; eram amigos de seu falecido pai. Jeremias conversou com eles por mais de hora e, depois de certo tempo, notara que o sol vagarosamente encaminhava-se na direção do poente. Era o momento de embarcar em sua canoa e voltar para seu rancho. Munido de um lampião, para o caso de a noite o encontrar, Jeremias desceu o arroio e costeou a lagoa, rumo à sua sesmaria. Voltava alegre por ter reencontrado gente de sua terra natal, com os quais deixara a certeza de um dia retornar àquele povoado a fim de revê-los. Porém, aquela emoção acabou por nutrir outro sentimento: Jeremias não queria ficar um minuto a mais sequer longe de sua Aurora, sua flor dos açores. Cruzaria o mar o quanto antes, a fim de buscá-la e dela fazer, então, a sua flor dos campos neutrais...

*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 25.10.2019. Na foto, composição de imagens com "mulher à beira mar" (disponível em pinterest.com) e "camélias da chácara", acervo pessoal.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Pedro e a Francesinha*


Pedro de Aguiar chegara à cidade e a primeira notícia que recebera foi a respeito do bilhete de Sofia; ele passara alguns dias na estância, em razão do excesso de trabalho que lá havia. Leu-o, largou-o e, de imediato, saiu, a pé, na direção do Hotel do Branco. A antiga Rua General Osório nunca lhe parecera tão longa: Pedro morava próximo ao Velho Sobrado, a duas quadras do Arroio e a duas quadras da Matriz. Chegando ao hotel, o rapaz silenciou ao ser informado de que Sofia deixara o estabelecimento há pouco mais de uma hora. Ele saiu à porta e, vagarosamente, caminhou na direção de casa. Pedro era um homem de uma família de boas condições, porém um sujeito muito simples em seu modo de ser. Seu cabelo era escuro e bem curto, ombros largos e pele um pouco queimada do sol, olhos escuros, porém dotados de certa ingenuidade, às vezes deixava crescer a barba, falava pouco e, muito raramente, sorria: ele era muito sério. Recentemente, havia machucado o pé direito, o que fazia com que caminhasse um pouco mais devagar e ligeiramente entortasse o pé ao pisar no chão. Ia Pedro pela rua quando se deparou com Seu Alvim Caminhão, que há pouco praguejara para uns rapazes que passaram curtindo-o a buzinadas. Seu Alvim fitou-o: “Pedro, como estás, meu rapaz! Fazia dias que não te via!” “De fato, Seu Alvim, estava para fora, muito serviço na estância.” “Vejo que estás com semblante entristecido. Que houve?” “Soube tardiamente que uma moça por quem tenho apreço esteve na cidade à minha procura. Agora, ela se foi para longe e nunca mais a verei.” “A moça de que falas é Sofia, a francesinha? Ela partiu não faz muito tempo, ajudei-a com as malas. Se fores rápido, consegues alcançá-la antes de embarcar no trem”. “É ela mesma, Seu Alvim, mas acho que não há mais tempo, penso que a perdi.” “Meu jovem, jamais desistas daquilo que mais queres e que te faz feliz. Se existe uma oportunidade de vocês ficarem juntos, abraça-a com toda a tua vontade. Corre atrás dela! Agora!” E assim Pedro o fez: chegou à casa, montou em seu cavalo e partiu, afoito, rumo à Ayrosa Galvão. 


O bar da Estação Ayrosa situava-se à direita de quem desce do trem: era uma peça pequena, com uma mesinha de madeira e duas cadeiras, além de um balcão com dois bancos mais à frente, todos na cor mogno. Sofia estava sentada em um dos bancos junto ao balcão e havia pedido um café ao atendente, enquanto aguardava a chegada do trem. Havia sempre um leve cheiro de café no ambiente, que se acentuava em especial naquela hora, que era a de seu fazimento. O moço trouxe um copo de café a Sofia – naquela época, na estação, o café era servido em copos de vidro incolor, trabalhados apenas nas bordas –, que gentilmente o agradeceu. Ela sorveu, angustiada, um gole do café; não queria partir e deixar Pedro para trás. A decisão tomada partia-lhe o peito, mas seguia firme: era preciso. Eis que de longe se escutava o apito do trem quando Sofia avistou um homem a cavalo vindo pela estrada. À medida em que se aproximava, maior sua certeza de que era Pedro o homem montado ao cavalo. Ele chegou à Estação e foi na direção de Sofia que, surpresa, ficou sem reação. Os dois se miraram e os olhares trocados disseram mais que as palavras. Um beijo selou o compromisso que, a partir de então, seria eterno. Pedro pegou as malas de Sofia, amarrou-as junto à cela de seu cavalo, os dois montaram e partiram, rumo ao Arroio Grande – e à felicidade... 

*Uma Ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 30.06.2017. Origem das imagens: Internet.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

A Francesinha*


O trem, vindo de Jaguarão, parou exatamente às três horas na Estação da Airoza Galvão. Um número pequeno de passageiros descera naquela tarde ensolarada, dentre eles, Sofia. O carregador ajudou-a com sua bagagem em direção ao primeiro charreteiro que ela encontrou e que a conduziu pelo longo caminho que ainda havia até chegar ao Arroio Grande. Ela subiu à charrete e, com a ajuda do carregador da estação, o charreteiro colocou as malas na traseira do veículo. Os dois, então, partiram em direção à cidade. Sofia era uma moça de aproximadamente vinte anos, estatura média, corpo magro, esguio e cabelos castanhos, longos, porém ocultados em parte pelo chapéu de aba larga que usava. Sua beleza despretensiosa lembrava telas a óleo do Século XIX. Era filha de Charlotte Charnoy, francesa, dona de uma Casa de Saliências em Jaguarão, na Beira-Rio, onde ali se estabeleceu em razão do advento da construção da Ponte Internacional. Apesar da vida que levava e da fama rotulada em sua testa, Mme. Charnoy sempre manteve Sofia afastada de todo esse contexto: não queria para a filha a mesma sorte que teve. Criou-a em uma pensão de moças e empregava generosas quantias em prol da educação formal da filha. Eis que, quando estava a terminar seus estudos no Colégio das Freiras, começou a passear na praça aos domingos com suas amigas, quando quis o destino que ela conhecesse Pedro de Aguiar, um jovem arroio-grandense que estava prestando serviço militar no Batalhão de Infantaria. Foi amor à primeira vista. Palavras foram trocadas. Juras foram ofertadas. Promessas foram firmadas. O colégio encerrou suas aulas e o batalhão, por sua vez, realizou o encerramento de suas atividades naquele ano. Ele retornou para Arroio Grande e ela, aflita, encontrava-se no dilema de ficar no Brasil e ir ao encontro dele ou retornar com sua mãe para a França. A construção da ponte há muito havia sido concluída. Eis que lá estava Sofia, sentada à charrete, há poucos minutos do Arroio Grande, embalando seus pensamentos ao ritmo do movimento da charrete: pensava em todos os acontecimentos. Iria ao encontro de Pedro, na esperança de com ele ficar. Ao chegar à cidade, a charrete parou à Praça Central, quando Sofia desceu e um homem que vinha passando, o Seu Alvim Caminhão, ofereceu-lhe ajuda com a bagagem, a qual prontamente aceitou. Ela se hospedaria no Hotel do Branco. No caminho, contou-lhe parte dos acontecimentos e dos motivos que a levaram a vir para Arroio Grande. À porta do Hotel, Sofia agradeceu a gentileza do Seu Alvim em ajudá-la e adentrou o estabelecimento. O Quarto 16 do Hotel se situava na esquina do prédio; a vista era ampla. Ali, Sofia aguardaria a chegada de Pedro, que prometeu vir a seu encontro. O cômodo era de uma simplicidade com certo incremento: à entrada, atrás da porta, havia um aparador de chapéus em bronze. Em frente à cama, estendida com lençóis brancos e colcha azul-turquesa, havia um pequeno móvel de tronco de cerejeira, com duas portas e uma gaveta, sobre o qual repousava um jarro e uma bacia, ambos brancos e de porcelana austríaca. À parede, atrás da porcelana, um espelho ovalado com acabamento cromado refletia a beleza cansada e angustiada de Sofia. A moça sentou-se à cama e olhou pela janela. Nenhum sinal de Pedro. Será que ele viria? Independentemente disso, já vinha com decisão tomada: aguardaria Pedro por dois dias, nada mais. Mandou-lhe bilhete por um dos guris que circundavam o hotel, sem haver resposta: o silêncio de Pedro criara uma barreira intransponível. Sofia entendeu, então, o recado: por mais que ambos se gostassem, um relacionamento entre eles seria impossível; o passado da mãe de Sofia sempre se faria presente em suas vidas. Ao segundo dia, Sofia se levantou, vestiu-se, pôs seu chapéu, acertou a conta na recepção e partiu rumo à estação novamente, na qual seu destino seria outro: Iria para Pelotas e, de lá, partiria de navio à capital e, após, à França, onde sua mãe a esperaria...

*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 09.06.2017. Origem das imagens: Grupo Defensores (Facebook) / Pinterest.com.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Um Piano, Um Romance*



Todas as tardes de verão eram propícias para Marcos. O jovem estudante de ciências humanas vinha passar suas férias no Arroio Grande, na casa de seus pais, aproveitando para rever seus amigos de infância e praticar um de seus passatempos favoritos: tocar piano. Todos os dias, perto das três da tarde, Marcos se dirigia de sua casa, próxima onde atualmente é a Torre do Ganso, famosa pela “Voz dos Pampas”, na direção do Clube Instrucção e Recreio. Para a sua sorte e felicidade, fizera pouco tempo que o Coronel Antônio Maria Batista Maciel, juntamente com sua senhora, Dona Florisbela Silveira Maciel, haviam doado para aquele clube o piano existente na sede da Estância Santa Teresinha, a “Charqueada dos Aguiar”, juntamente com um conjunto de espelhos daquela propriedade.


Marcos passava uma boa fração das tardes no salão do clube, próximo ao correr de janelas com vista para a rua principal e à praça central, onde se localizava o piano. O jovem deslizava seus dedos pelas teclas daquele instrumento, tocando as mais diversas melodias, desde polcas até os clássicos, assim como os gêneros mais ouvidos naquela época. As pessoas que passavam na rua naquele período da tarde admiravam a sonoridade extremamente aprazível e extasiante que provinha do salão do clube. A música preenchia todos os espaços e fazia com que se formasse uma aura mítica e surreal pelas dependências do antigo prédio. Os funcionários da diretoria, assim como os demais integrantes do quadro de pessoal, por vezes paravam suas atividades para prestigiar aqueles momentos de talento e inspiração do jovem, em especial, uma das funcionárias: Celina...


Celina era uma jovem de média estatura, cabelos castanho-escuros e pele moreno-clara; possuía olhos escuros, cor de jabuticaba, e um semblante leve. Fazia cerca de um ano que trabalhava no clube, na função de faxineira do salão. Sua rotina era bastante monótona, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa; porém, apesar da monotonia, nunca deixava de sonhar e idealizar felicidades vindouras. Seus dias ganhavam cor e beleza no simples fato de ouvir as canções tocadas ao piano por Marcos naquelas tardes de verão... Certo dia, o jovem tocara “Noturno”, de Chopin; Celina ouvira atentamente, e, à noite, em casa, olhava a lua cheia da janela da sala e recordava a música, como que se estivesse sendo tocada novamente. Marcos notara seu ouvido atento às músicas que ele tocava e, na tarde seguinte, antes de sentar-se ao piano para mais uma tarde de música, foi à procura de Celina pelas dependências do Clube...


Marcos procurou por Celina por todas as dependências do Clube Instrucção e Recreio, porém não a encontrou. Celina havia ido ao Armazém do Chico Góz, com a finalidade de buscar os produtos necessários para encerar o assoalho do salão. O moço, por sua vez, dirigiu-se ao piano, sentou-se e começou a pensar nas músicas e na bela jovem. Em sua mente, começou a esboçar a trilha sonora que tocaria ao piano naquela tarde.
Marcos era de um talento pouco conhecido por estas terras outrora neutrais: sabia tocar ao piano boa parte dos clássicos, sem necessitar fazer uso de partitura; o jovem, àquela idade, já era conhecido por ser uma enciclopédia musical. Em via contrária, Celina sempre foi grande admiradora de música; quando adolescente, foi corista no coral das missas de domingo da Matriz, na época em que estava fazendo a primeira eucaristia. Era reconhecida pelo seu tom suave ao cantar as músicas ensaiadas junto às freiras. Quis o destino que aqueles dois, ambos jovens, de diferentes origens, porém com o mesmo amor pela música, se encontrassem naquele clube.


Marcos havia acordado estranho naquele dia: ao mesmo tempo em que estava um pouco eufórico, carregava consigo uma certa angústia, uma melancolia. Por isso decidiu que iria começar aquela tarde com Bach e, logo após, tocaria uma composição de Schubert. E assim foi: Quando Celina retornava do armazém, começou a escutar, à medida que se aproximava do clube, a sonoridade agradável e hipnotizante que vinha em sua direção. Marcos tocava o Prelúdio nº 1 de Bach; seus dedos hábeis e suaves quase que deslizavam pelas teclas do piano. Por estas terras, ainda não existia pianista que a ele se igualasse. Celina adentrou o prédio quase que carregada pelas notas daquele prelúdio; foi na direção do almoxarifado, a fim de deixar os produtos que ora havia comprado no armazém e se dirigiu, depois, ao salão.

Quando lá chegava, Marcos havia começado a tocar a introdução da Ave Maria de Schubert; Celina, naquele instante, havia alcançado sua glória: era sua canção preferida, desde a época em que foi corista na Matriz. Eis que ela começou a cantar, suavemente, acompanhando o piano de Marcos. Ambos entraram em harmonia sonora, física e espiritual: cantavam e tocavam olhando-se nos olhos. Após a canção, Marcos e Celina se aproximaram e ficaram amigos, de amigos passaram a namorados e de namorados a noivos: a música os uniu.


Apesar da resistência de ambas as famílias, Celina e Marcos decidiram que iriam se casar. Já era outono quando a cerimônia de casamento aconteceu: as folhas das árvores da Praça Central repousavam por sobre o chão do adro da Matriz, formando um esparso tapete pelo caminho. A cerimônia foi simples; mesmo assim, a Ave Maria foi cantada quando Celina atravessou a nave para chegar ao altar e aos braços de Marcos. Com um beijo à testa da moça, o enlace matrimonial havia sido selado. E o jovem casal partiu, feliz, rumo à lua de mel.


De Marcos e Celina, pouco se soube depois de terem se casado; ambos se foram de muda do Arroio Grande para a capital, onde o jovem terminara seus estudos. Lá, continuaram a escrever suas páginas no livro da vida, acompanhados de muita música. O prédio do clube, anos após, passou por ampla reforma, que lhe tirou o estilo neoclássico e lhe atribuiu formas e contornos mais modernos; ainda assim, o piano lá continuou, tal qual um senhor idoso que insiste em querer vencer o tempo; porém, aquele velho instrumento ainda se encontra capaz de manter, em suas teclas e entranhas, a memória daqueles áureos dias em que Marcos tocara e encantara a todos, em especial Celina, nas agora distantes tardes de verão...




*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada em duas partes no Jornal Correio do Sul de Arroio Grande, em 16.03.2017 e 30.03.2017. 

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Amadeo, o Aquarelista da Villa*

Quadro "Villa do Arroio Grande" (1883), de Amadeo de R., entronizado na
Salada Presidência da Câmara Municipal através da Portaria nº 04/98, de 25.11.1998.
       Fazia poucos dias que José Alberto Baptista retornara da capital; havia ido buscar seu filho, José Alfredo, que tinha recebido alta da Santa Casa, após longa estadia naquele local. Lembrava com tristeza do dia em que seu primogênito adentrara, tísico, naquela irmandade; recordava, ainda, da promessa que fizera à padroeira da Villa, ali, ajoelhado, na primeira fileira de bancos ao pé do altar da Matriz: prometera que, se José Alfredo tivesse rápida recuperação, traria um artista para desenhar um retrato panorâmico daquele povoado, dando destaque para o paço da igreja, o qual presentearia à Câmara Municipal, na qual era vereador. Assim que recebeu a notícia de que seu filho estava recuperado, foi à capital buscá-lo, oportunidade na qual aproveitou para dar cumprimento à promessa: saiu pelas ruas de Porto Alegre à procura de um artista que se propusesse a fazer, em tempo hábil, o retrato prometido. Nas idas e vindas de José Alberto, eis que encontrara, ao acaso, um homem alto, esguio, cabelos lisos e bigode fino, com o qual estabeleceu conversação, momento em que descobriu sua vocação para com as artes da pintura e do desenho. Seu nome era Amadeo, um jovem de origem italiana que veio em expedição às terras brasileiras e que aqui acabou por ficar, tamanho o seu encantamento pelas terras situadas abaixo da linha equatorial. Alberto fez o convite a Amadeo, o qual prontamente aceitou. Os três – Alberto, Alfredo e Amadeo – vieram em partida à Villa do Arroio Grande. Após estarem instalados na casa de Baptista, o anfitrião e Amadeo saíram a cavalo pelas redondezas, a fim de que o artista se familiarizasse com o local. Começaram pelo paço e partiram, após, pela beira do arroio. Seu encantamento era supremo; jamais havia visto um lugar tão belo e tão simples ao mesmo tempo. Subiram a coxilha do fogo e lá, do norte, o artista pôde obter uma visão do panorama que seu anfitrião gostaria de ter retratado em uma pintura; já tinha em mente, neste momento, o que Alberto almejara ao procurá-lo. Eis que Amadeo deu início à fazedura de sua obra artística: primeiramente, desenhou o paço da Villa; foram dois dias de observação ao contorno arquitetônico dos prédios. O traçado a lápis do italiano era de uma precisão pouco conhecida por estas bandas e reproduzia, com perfeição, cada detalhe das fachadas. Após, foi a vez de retratar o povoado a partir da vista para além da coxilha do fogo; foram sete dias de árduo desafio à perfeição a qual Amadeo se entregou. Dado por pronto o desenho e a pintura da Villa e do paço, o artista passou à fase dos acabamentos: retratou os gaúchos em seus cavalos, personalidades com quem muito se deparou em suas andanças por estas terras, bem como inseriu os escritos que Alberto havia lhe solicitado. A obra, enfim, estava pronta. Era chegado o dia da entrega da aquarela à Câmara Municipal. Para a ocasião, a Casa realizou uma pequena solenidade, por ordem de seu Presidente. Nela, estiveram presentes Baptista e os demais Vereadores, assim como as demais representações administrativas da Villa, além, é claro, do autor do quadro. A obra foi, então, apresentada a todos, que, diante de tamanha precisão para os padrões da época, ficaram sem palavras para descrever a beleza dos traços do artista. Terminada a solenidade, Amadeo estava com tudo aprontado para sua partida. Despediu-se de todos, em especial de Alberto, o qual não sabia como manifestar agradecimento e partiu, para nunca mais voltar. Com a Villa, ficou o quadro, para a posteridade e – quiçá – eternidade. Com Alberto, ficou a estranheza do pedido de Amadeo: de que seu sobrenome jamais fosse revelado. E assim ele o fez...


*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada originalmente no Jornal Correio do Sul, Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, em 23.02.2017.